MORFOLOGIA HEMATOLÓGICA EM ÉPOCA DE AUTOMAÇÃO
Paulo Cesar Naoum, biomédico, professor titular pela UNESP e diretor da Academia de Ciência e Tecnologia de São José do Rio Preto, SP, Brasil.
A automatização laboratorial foi uma consequência natural do desenvolvimento das tecnologias em mecânica, eletrônica e computacional. Os primeiros contadores de células desenvolvidos nos anos 60 do século passado tinham por base a mecânica sofisticada e a eletrônica de válvulas. Facilitava para o que considerávamos como grande rotina de exames hematológicos, qual seja, a de 100 amostras diárias! Estes aparelhos, após realizarem as contagens globais de eritrócitos e leucócitos, precisavam repousar por quatro horas seguidas até seus componentes eletrônicos esfriarem. Nos anos 70, os transistores substituíram as válvulas e a capacidade de avaliação dobrou em números de amostras. Esses equipamentos tinham uma novidade, a telinha de ecrã. Conforme acionasse a chave de eritrócitos ou de leucócitos, a telinha mostrava um amontoado de pontinhos distribuídos em forma de curva de Gauss, que representava o conjunto das células contadas. Células normais se localizavam mais centralmente e as alteradas à esquerda ou à direita. Através de cálculos matemáticos esses gráficos passaram a gerar valores de hematócrito, hemoglobina e os índices VCM, HCM e CHCM. Nos anos 80 foi introduzida a tecnologia computacional com placas eletrônicas específicas e mais sofisticadas que avaliavam algoritmos e, dessa forma, surgiram índices que mediam as superfícies dos eritrócitos e leucócitos. Resultaram daí, por exemplo, o RDW que avalia a porcentagem das alterações eritrocitárias em relação aos tamanhos e formas, porém sem capacidade para diferencia-las. Nesse período surgiu, também, algoritmos que definiram a contagem diferencial de leucócitos em dois grupos: granulócitos e células mononucleares, além da contagem global de plaquetas. Entretanto, nos anos 90 as indústrias de equipamentos de laboratórios passaram a oferecer contadores de células com boa definição de resultados e mais robustos para a grande rotina . O desenvolvimento de sistemas computacionais – softwares específicos – associados a espelhos para captação de imagens de células, permitiram a diferenciação dos granulócitos em neutrófilos, eosinófilos e basófilos, bem como distinguir as células mononucleares em linfócitos e monócitos. Por meio dessas análises obteve-se registros além do tamanho celular, com destaques para o volume de grânulos citoplasmáticos e tamanho nuclear. Esses equipamentos passaram também a contar reticulócitos. No fim da década de 1990 e início dos anos 2000 foram estabelecidas as técnicas de imunofenotipagens e que foram acopladas às contagens de células, iniciando, assim, a citometria de fluxo. Essa nova metodologia foi fundamentada na diferenciação de centenas de determinantes de antígenos de membrana das células do sangue e de outros tecidos. Os antígenos foram classificados numericamente em diferentes grupos, internacionalmente conhecidos por Cluster of Differentiation ou, simplesmente, CD. As primeiras aplicações serviram para avaliar quantitativamente os linfócitos CD4 e CD8, mudando completamente o paradigma para diagnósticos e procedimentos terapêuticos da síndrome da imunodeficiência adquirida, a AIDS. A partir de então diagnósticos para leucemias, linfomas e outras patologias mieloproliferativas passaram a utilizar a imunofenotipagem, e as células suspeitas de anormalidades puderam ser quantificadas por citometria de fluxo. Mesmo com todo o progresso tecnológico dos contadores automatizados, a microscopia das células do sangue permanece fundamental para a complementar a avaliação do hemograma. A automação mais avançada disponível até o presente não consegue destacar, por exemplo, células falciformes, policromasia, diferenciação entre esquisócitos e células fragmentadas. Nem mesmo a bela figura da célula em alvo consegue ser detectada pela automação. Esses equipamentos carecem de sensibilidade para diferenciarem o roleaux (empilhamento de eritrócitos) da aglutinação eritrocitária. Da mesma forma não detecta as inclusões celulares eritrocitárias de pontilhados basófilos e os corpos de Howell-Jolly, ou as inclusões de grânulos tóxicos, vacúolos citoplasmáticos, corpos de Dohle ou grânulos de Chediak-Higashi em neutrófilos. Somando-se a essas deficiências analíticas, destaca-se a incapacidade dos equipamentos automatizados em identificarem e diferenciarem os linfócitos atípicos de plasmócitos, células de Mott e corpos de Russel, assim como as plaquetas agranulares daquelas com distribuição anormal de grânulos. Por todas essas razões e por mais fantásticas que sejam as ofertas da automação hematológica, os hemogramas com contagens alteradas, ou com indícios de anormalidades (flags), devem ser indiscutivelmente submetidos às análises microscópicas. Com esses procedimentos corretos, os resultados serão mais apropriados e seguros para o diagnóstico médico.